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UMA QUESTÃO DE CONFIANÇA


Várias vezes nos interrogamos se devemos confiar em quem infringe as regras com que, bem ou mal, temos que conviver. Se podemos confiar bens a um larápio e que oportunidades podemos oferecer àqueles que, frequentemente, as desprezam.
Penso que aqui, mesmo aqueles com mentes mais abertas, têm dificuldades em se libertarem dos seus estereótipos cada vez que analisam o seu semelhante em contextos sensíveis à desconfiança.
Não vou acrescentar nada sobre confiar ou não confiar a não ser aquilo que praticamente todos sabemos: a desconfiança gera comportamentos negativos enquanto a confiança inspira responsabilidade e vontade de respostas que não desiludam.
O caso que vou contar passa-se num contexto de toxicodependência em que o preconceito é mais forte pois os consumidores de drogas não olham a meios para obterem o produto.
À sexta-feira tenho por hábito atender alguns angariadores de moedas ou de alimentos. Não indago o destino das moedas apenas procuro criar um laço de proximidade com quem já perdeu todas as referências.
Foi assim que conheci o (X). Nunca lhe perguntei o nome. Era muito jovem e débil. Por vezes aparecia-me de vestes ensanguentadas de se perfurar.
Numa quarta-feira encontro o (X) a roubar laranjas do expositor duma mercearia. Ele vê-me e corre sem abrir mão das laranjas. Corro atrás dele mas não o apanho. Porém penso: este não volta a aparecer-me à sexta-feira. Mas voltou. Olho para ele e pergunto-lhe:
- Não me viu correr atrás de si?
- Vi, responde ele.
- E porque não parou?
- Porque o homem da mercearia me bate e chama a polícia.
- Mas quem correu atrás de si fui eu. E nunca lhe bati nem chamei a polícia. Apenas lhe queria oferecer as laranjas.
Baixa os olhos, recebe a moeda e vai embora. Porém, no dia a seguinte, ouço-o tocar à campainha e digo-lhe de cara amarrada:
- Hoje não é sexta-feira.
- Sei que não é sexta-feira, responde-me ele. Mas não venho pedir. É que a senhora deixou cair a sua carteira ao pé do seu carro e venho entregar-lha.
E estende-me a carteira que tinha em numerário cerca de 400 euros e vários cartões bancários. Emocionada abro a carteira para o gratificar. Porém, ele recusa acrescentando:
- Hoje não é sexta-feira. Deixe-me ser decente consigo desta vez.
Ficámos amigos durante largo tempo até que desapareceu. Pergunto por ele mas nada consigo saber.
Dentro de mim (X) continua sem nome mas como uma lição de vida. Alguém que tendo perdido tudo conseguiu um reduto de decência que lhe deveria permitir uma nova oportunidade. Um reduto que muitos dos que são estimados e valorizados não conseguem ter.

12 comentários:

intervalo disse...

Acompanho-te algum tempo,passo aqui quando possível para sentir este espaço,tocou-me profundamente este texto é o nosso cotidiano aí ou aqui e vivo a interrogar-me.Faço das suas,minhas palavras (as regras com que bem ou mal,temos que conviver).Desejo que 2011 seja um ano melhor para todos nós principalmente em relação aos nossos semelhantes.Boa noite,beijos.Lia...

São disse...

Pois é, minha querida, as pessoas revelam-se quando são tratadas como aquilo que são: pessoas.

Linda, a tua prenda já está à tua espera no "SÃO", oxalá gostes!

Uma serena noite.

Pimenta disse...

Eu vivi algo parecido.Mas foi apenas uma vez.Era dia dos pais.Estava eu na rua, e um rapaz do crack, sujo, arrebentado e sem dentes me pediu dinheiro.Eu não dou dinheiro.Perguntei para quê, e ele disse que teve duas filhas, e queria aparecer na casa delas com alguma coisa para a mão(fraldas)Eu me ofereci para ir ao mercado com ele e ele aceitou.Levei-o até meu edifício para pegar minha carteira.O porteiro não o queria ali, e eu pedi que ele ficasse sentado esperando.O porteiro foi aatraz de mim dizendo que conhecia o malandro, que não valia nada.Insisti qe o deixasse esperando ali.
Peguei e foms ao mercado ali perto.
Na entrada, o segurança não queria deixa-lo entrar.Disse que era ladrão,e que iria me roubar.Tive que discutir com o segurança, e entramos no mercado, com um séquito de seguranças atras.Quando estavamos enchendo o carrinh, conversamos.Ele me contou toda a vida, e eu só dizia que as coisas sempre tem conserto.Comprei tudo que eles precisavam.Foi razoavelFraldas, leite me pó e uplementos.Pedi que voltase no próximo mês.Não voltou.Pelo estado dele, temi que tivesse morrido.
Minha surpresa aconteceu uns trˆs meses depois.
O vejo decentemente arrumado, caminhando em direção a um banco com malotes de uma empresa.
Não chamei por ele,mas deu para perceber que algo mudou, e para melhor.
Acho que as vezes, uma palavra esclarece aquilo que estava escondido.
obrigada pela partilha.
bjo

SILÊNCIO CULPADO disse...

Querida São

Obrigada pela lembrança que é afecto e uma das minhas músicas preferidas.
Estes últimos meses não têm sido fáceis embora eu procure não deixar transparecer.
A tua amizade é uma bênção.
Estás esplêndida minha querida! Que excelente aspecto. Beijinhos

Lídia

R.Almeida disse...

Há sempre um resquicio de dignidade em qualquer ser humano, mesmo naqueles em que por força do destino e do "produto" agem de forma, onde os valores dos afectos e principios são suprimidos pelo ewstupefaciente. Onde estará (X)? Possivelmente pereceu com uma overdose ou quem sabe conseguiu sair da escravidão da droga e só por vergonha não te procura.

Gosto da nova cara do "Silêncio Culpado" e os botões dos temas levam-nos a textos muito interessantes que convidam à reflexão.
Um abraço e força para que o projecto seja um sucesso.

JOY disse...

Minha querida amiga,

Fico bastante contente de te ver voltar, nunca será de mais frizar que a tua maneira de olhar e viver a vidadeve ser uma inspiração para todos por saudo o teu regresso. Agradeço-te as simpáticas palavras de deixas-te no meu blog, relativamente a este post gostaria de acrescentar que devemos cada vez mais lutar contra os estereótipos e a necessissade de rotular tudo e todos, para mim por uma razão importante: ainjustiça desse mesmo julgamento, e este exemplo que referes é bem o exemplo disso.
Grande beijinho para ti e bom 2011

Joy

Mª João C.Martins disse...

Lídia

Uma lição de vida, é certo!

A confiança é algo que se conquista lentamente e, por vezes, obrigando a repetidas provas até à concessão de crédito. No entanto para se a perder, muito pouco basta e em muitos casos está perdida à nascença, pela ausência da oportunidade negada por preconceito.
Quem lida de perto com pessoas carenciadas, marginalizadas e ou excluídas, sabe o quanto se negam as oportunidades àqueles que esperam tão só, ter apenas uma delas, por pequena que seja. Alguém que acredite!
Ainda hoje, na consulta de enfermagem de pediatria , tive oportunidade de verificar o progresso feito por uma mãe com quem traçara objectivos relativamente ao cumprimento dos hábitos de higiene dos filhos. Confiei nela e ela cumpriu. Mas outra houve em que, tendo-lhe sido dadas todas as oportunidades, ajudas e acompanhamentos, continua a negligenciar a administração medicamentosa do filho.
As oportunidades têm de ser dadas! Confiar ou não confiar, dependerá depois das provas dadas e dos riscos envolvidos.

Um abraço

Raul Almeida disse...

à moda do Facebook coloco um gosto no comentário da Maria João.
Um texto lindo escrito com alma, que encorpora verdades tantas. E mais não digo a não ser: "Gosto Muito"

Unknown disse...

A confiança é um acto de fé, e esta dispensa raciocínio ...

Beijo.

. intemporal . disse...

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. o exemplo gera o exemplo .

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. o comportamento gera o comportamento .

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. e "todo o gesto é um acto revolucionário" .

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. bem latente e patente neste texto, que com comoção as.cende e trans.cende .

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. porque por de.trás de cada pele tatuada pelo destino há um coração que pulsa e avança .

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. uma alma que não é avulsa . a emoção de uma criança . num corpo que entre.tanto cresceu . e paralela.mente cedeu .

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. na derradeira essência camuflada pela aparência isolada num corpo entregue ao a.caso .

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. no termo . como o.caso .

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. este é um caso .

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. a que ninguém poderá permanecer in.diferente .

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. porque, só por si já marcou a diferença .

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. saio . não de mãos.a.abanar . mas com o coração oscilante .

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. grat.íssimo .

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. e todos os meus votos são a ascese que constituem uma espécie de prece para que este projecto seja aquilo que à partida já é:

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. um exemplo para a humanidade deste chão, tão repleto de vida .

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. sempre ávida . por acrescentar .

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. [ainda] .

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. um abraço .

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. paulo .

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C Valente disse...

recebi informação que o votoem branco era tambem importante, mas já fui esclarecido, de qualquer das formas, mantenho não acredito nestes politicos e em Cavaco muito menos.
Saudações amigas

Anónimo disse...

Bem-vinda Lídia ao teu espaço...
lamento ser crédulo e céptico pelas más surpresas...

abraço