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JOÃO - UMA HISTÓRIA DE VIDA


João era contínuo num departamento onde trabalhei. Tinha ali sido colocado, por reclassificação profissional, após um acidente de trabalho que, após várias intervenções cirúrgicas, o deixou fragilizado duma perna.


Era um homem de 36 anos falador e activo que, desde logo me deixou a impressão dum enorme potencial sub-aproveitado. Com uma vontade imensa de aprender, e uma capacidade muito acima da média, rapidamente se integrou nas funções que exercia com invejável espírito de iniciativa, dedicação e polivalência. Ele separava e distribuía a correspondência, dava assistência às máquinas da reprografia, fazia serviço de marceneiro e tudo o mais que se lhe pedisse sem nunca demonstrar enfado.

Sabia que vivia com dificuldades. Filho duma família pobre e numerosa tinha que participar nas despesas dum Lar de 3ª. Idade onde o pai cego estava internado. Também estava a amortizar o apartamento (que adquiriu dando como entrada o valor da indemnização pelo acidente de trabalho) onde vivia com a mulher e os dois filhos pequenos. Para angariar mais algum dinheiro pois o vencimento era baixo, João trabalhava em biscates mal saía da empresa. No Verão vendia gelados nas praias e também fazia pequenos arranjos de manutenção em casas particulares.

Frequentemente chamei a atenção da Direcção de Recursos Humanos para as capacidades do João e para a vantagem que a Empresa teria em dar-lhe uma categoria profissional mais condizente com o seu mérito. Mas a Empresa não era minha e ia-se escudando em normativos arcaicos e constrangedores para não valorizar profissionalmente o João. Um dos argumentos é que ele tinha apenas o 2º.ciclo do ensino básico.


Apesar de eu conhecer como estas empresas públicas funcionam, mesmo assim instei com o João para se matricular à noite numa escola pública o que ele acabou por fazer com bons resultados. Três anos depois conseguiu tirar o 11º. Foi nessa altura que abriu concurso para uma categoria de chefia intermédia que tinha como requisitos, além da experiência e informação da chefia, a escolaridade mínima do 11º. Quando tudo parecia correr de feição fui chamada a mais altas instâncias e admoestada por estar a incentivar um contínuo a concorrer a um cargo de chefia intermédia. O argumento era o de que um trabalhador subalterno de nível mais inferior não poderia passar a ser chefe de pessoas que antes estavam "acima dele".

Argumentei que essa não era uma razão porque a pessoa em causa valia por ela própria. Mas os meus argumentos de nada valeram. O João concorreu mas não foi colocado. Como prémio de consolação deram-lhe um cargo de operador de reprografia, com mais uns 10 €/mês de vencimento e a promessa que aquela categoria seria um trampolim para outros concursos como aquele de que o João fora arredado.


Entretanto saí da Empresa e passei uns anos sem saber do João. Um dia encontrei um ex-colega que me disse que o João tinha sido reformado por invalidez pois abusou do trabalho em biscates extras para complementar o vencimento e tiveram que lhe amputar a perna doente. Estava portanto em sérias dificuldades.


Fui visitá-lo passado pouco tempo. Não vou entrar em pormenores sobre a visita profundamente constrangedora para mim e para ele. Basta que diga que senti vergonha pela injustiça que foi praticada. E foi com vergonha que procurei na mala algum dinheiro para lhe deixar mas, na falta deste, optei por lhe passar um cheque algo generoso para as minhas possibilidades.


Chamei a atenção da mulher para o papel deixado debaixo do cinzeiro para ser entregue ao João depois de eu sair.


Nunca mais vi o João e o cheque nunca foi descontado.



*Este texto insere-se num conjunto de posts que é minha intenção criar no Ano Internacional de Combate Pobreza e Exclusão Social. João é nome fictício bem como alguns pormenores com vista a não identificar o protagonista se por aqui passar alguém que o conheça. Mas a história é verdadeira. Uma história entre muitas em que a injustiça social prevalece e se legitima em diferentes formas de pobreza. Também a pobreza moral de quem decide em circunstâncias como esta.



33 comentários:

Unknown disse...

A injustiça que se faz a um, é uma ameaça que se faz a todos.

Beijos querida amiga.

Teresa Durães disse...

Fulana trabalha numa empresa e teve a infelicidade de apanhar uma doença que poderia tê-la morto. Um mês internada e mais um mês em casa para ficar boa. Despromovida no posto de trabalhado apesar de ter sido a melhor na sua profissão e a nível de Portugal.
Ameaça de despedimento se levantar voz ou ter o azar de adoecer de novo. Ameaça de despedimento se casar e colocar os dias a que tem direito. Filhos, nem pensar.

Criança tal tem a doença com hiperactividade e défice de atenção (TDAH)que faz com que seja inserida nas necessidades educativas especiais. Rótulo na testa, não escapa de estigma, trabalhando mais do dobro, não por falta de inteligência, pelo contrário, nível elevado, antes por ter dopamina a menos. Espera-se que seja ultrapassado na mudança de idade mas tendo já a desvantagem relativamente às saudáveis. Discriminada e colocada de parte há oito anos.

Fulana tal com doença mental que foi agravada. Depois de baixa, colocada no emprego sem trabalho e designada de ter perdido a noção da realidade mesmo estando estável. Excelente na sua profissão, passou de bestial a besta. Não foi despedida por não haver enquadramento legal dado ser funcionária pública, mudou de local após outro atestado e de novo foi colocada na prateleira. Mudou de novo e não sabe o que lhe vai acontecer desta vez indo trabalhar mesmo quando não tem capacidade para tal.

Fulana tal, professora destacada num ministério, teve cancro, meteu baixa para fazer os tratamentos e foi recambiada para a escola por não estar presente. Também boa profissional, detentora de grande conhecimento na área.

Criança tal, sobredotado, mas com problemas de socialização e nenhuma atenção nas áreas que não lhe interessam, características destas crianças. Síndroma de Asperger, dá lições sobre algumas matérias aos professores dessas áreas. Estigma, rótulo, colocado à margem. Agora a quererem que tenha curriculum próprio

São muitas as histórias que conheço, todas as que contei são verídicas.

Por vezes custa-me ler os teus post devido até à hipocrisia que aqui leio nos comentários, desculpa. Não têm noção, não se informam, estão sossegadas nas suas vidas sem problemas mais graves e dizem frases como "isso somos todos"

A raiva que sinto!

José Lopes disse...

O preconceito sustentado em formalidades é incompatível com o justo reconhecimento do mérito, e este é um dos maiores impedimentos a que exista justiça nas avaliações e igualdade de oportunidades para todos demonstrarem as suas reais capacidades.
Cumps

Fatyly disse...

Infelizmente o João não é o único e além da hipócrisia de quem gere empresas e sobretudo as públicas há que juntar a hipócrisia e dor de cotovelo de alguns colegas-lambe-botas-que-nada-valem-mas-julgam-se-os maiores!

Também tenho várias histórias veridicas do meu próprio trabalho e nunca me arrependi do que disse, do que fiz e de me pôr ao lado de quem era tão desprezado(a) versus esquecido(a).

Beijos

Nocturna disse...

Se não tivermos o coração aberto e a mão estendida para todos os que são vítimas de injustiça , não seremos seres humanos por inteiro. E seremos todos mais pobres.
Um abraço minha amiga.

Pata Negra disse...

Estás a ver? Diz-me, no caralivro tb se pode fazer isto? Talvez sim!
(Estive lá no caralivro e vim-me logo embora / hei-de voltar / mas atenção: não tenho mto tempo livre, sou ainda muito novo!)
Um abraço nas tuas causas que são a minhas causas

Manuel Veiga disse...

pobre e digno...

excelente ideia. excelente texto

abraços

SILÊNCIO CULPADO disse...

Manuel Marques

É verdade o que dizes, amigo, só que há muita gente que pensa que o mal dos outros não lhes diz respeito. Tal como no poema de Brecht só acordam quando são directamente atingidos. Porém, se formos todos questionando este lugar desumano e injusto que é o mundo talvez o tornemos menos injusto e menos desumano.

Abraço

SILÊNCIO CULPADO disse...

Teresa Durães

O teu comentário tocou-me muito fundo pela força da razão nos casos que apresentas.
É por esses casos, e por todos aqueles que existem e aqui não cabem, que nos temos que erguer. Nem todos nos entenderão mas serão cada vez mais aqueles que pensarão que terão que se erguer da sua indiferença e contribuir para a construção de sociedades mais justas e solidárias, sem discriminações nem absurdos preconceitos.

Abraço

O Árabe disse...

Injustiça, sim. É triste termos que conviver com elas a cada dia! Boa semana, minha amiga.

Anónimo disse...

A história é triste, no entanto banal neste país do faz-de-conta. Sem conhecer os pormenores do tal concurso, era capaz de avançar com a hipótese de que terá sido escolhido para o cargo algum sobrinho, primo ou compadre do director, mas isso é a minha mente preversa a funcionar...

Saudações do Marreta, e vamos ver se é desta que consigo aqui publicar um comentário. Tenho anteriormente tentado várias vezes sem sucesso. Para o pessoal fora do "Blogger" a coisa é difícil!

Å®t Øf £övë disse...

Lídia,
Esta tua história veridica só vem de encontro ao mundo cruel onde vivemos, em que quem tem valor nunca é promovido ou aproveitado, e quem entra em esquemas, falcatruas, ou o que lhe quisermos chamar, é que acaba sempre injustamente por lhe ver a vida sorrir.
Bjo.

Bichodeconta disse...

Infelizmente conheço eu e todos nós casos desses e piores.Eu sofro na pele a amargo de depois de tantos e tantos anos de trabalho me ver a uma distancia enorme de uma reforma de miséria, mas desempregada e com as dificuldades inerentes aos que se encontram no meu caso..E não, não são todos os desempregados que estão nesta situaçã.Alguns auferem chorudos subsidios e ainda trabalham noutros lugares tirando a oportunidade a alguém..Enfim..Fico-me por aqui..Disse-me um dia um amigo:Não digas a ninguém que estás mal na vida, a partir desse dia, até os cães te mijam em cima..É uma frase tão verdadeira que assusta..Um beijinho

Mª João C.Martins disse...

Lídia

Já passaram alguns dias desde que aqui vim, ler esta história de vida. Como muitas vezes acontece, levei-a comigo, e ocupei-me dela em pensamento, para tirar todos os sentidos e todas as lições, pensando em outras histórias de outras vidas, sublinhadas como esta, a traço cinzento.
A vida do João foi, como a de tantos outros, condicionada pela visão e decisão, arrogante e presunçosa de outros, que se julgam “maiores” de poderes e de direitos. Senhores de "nariz empinado e emproado" para quem os canudos, grandes ou pequenos, são certificados de supremacia (outros assim pensaram e ainda pensam, relativamente à cor ou à raça). A pobreza moral destas atitudes, que têm destruído a vida de tanta gente, é uma espécie de virose incontrolável que se propaga cada vez mais. A arrogância e a discriminação é uma doença social gravíssima!
Toca-me profundamente, a humildade daqueles, como o João, que vivendo sempre na necessidade; económica, humana e social, sofrendo calados a injustiça de se sentirem sem sorte a vida inteira, se tornaram "grandes" nos valores fortalecidos na força da sua resiliência.
Pena, como dizia a minha avó, que isso por si só apenas enobrece a alma humana e não lhe encha a barriga.

Um abraço, apertado

Anónimo disse...

Lídia
quase sempre comovente com os temas humanos de sofrimento, que aliás proliferam abundantemente...se as empresas tambem têm um papel social (?) provam-no frequentemente muito mal com a agravante de , em certos casos, os detentores da decisão não passarem de meros cromos.

um abraço solidário

Lala disse...

Lídia... 'tropecei' no seu blog por acaso e agarrei-me à história do 'João'. No final caiu-me uma lágrima silenciosa, então voltei a ler. E dei-me conta de que infelizmente a história do João, afinal não me surpreende. Afinal, a história do João já eu a lera por aí algures. E já eu conhecera "Joões" doutros 'carnavais'. Pessoas humildes e dignas, infelizmente na sociedade em que vivemos, não têm o seu lugar. E sabe porquê? Porque neste mundo em que cada vez mais se cultiva o 'salve-se-quem-puder' as pessoas tornaram-se carniceiras. As pessoas deixaram de amar. As pessoas deixaram de olhar para o lado. E a questão nem sequer está no seu próprio umbigo. Até porque as pessoas cegaram de ambição.
**
Muito bom este seu alerta num testeminho da vida real.
**
Peço desculpa invadir assim o seu blog e desatar a escrever sobre o seu post.
Gostei de aqui estar.
Parebéns!

fa_or disse...

São relatos assim que me fazem doer na alma!... a falta de escrúpulos de uma sociedade que premeia o compadrio em detrimento do mérito e faz subir na vida quem anda ao beija-mão colocando na miséria uma larga maioria.

Bom trabalho o teu!

Beijos

Valsa Lenta disse...

Nesta manhã de domingo liguei a net - e a primeira visita que fiz foi a este blog maravilhoso! Devo confessar que fiquei com as lágrimas nos olhos - não por desconhecimento da realidade social - pelo contrário!
Quantas pessoas com baixa escolaridade têm capacidades e até competências superiores a licenciados. infelizmente, muitos deles não tiveram possibilidades de seguir estudos.
O caso que descreve revela-nos um homem tremendamente trabalhador e esforçado acima das suas possíbilidades físicas.
Um Homem de Honra!

Obrigada pela sua partilha!

Felicidades

Lúcia Laborda disse...

Querida amiga; vi em um blog de amigo em comum, que havia retornado. Que bom!...
Pois é a vida, infelizmente. Por muitos preconceitos, pessoas teem perdido oportunidades. Isso precisa mudar. Mas quando veremos isso acontecer?
Boa semana! Beijos

sideny disse...

Ola Lidia

E pena que no nosso pais ainda se continue a ver caso desses.

Alias e uma injustica.

beijinhos

Teresa Durães disse...

olá, Hoje convido-te para dares um salto ao Voando

São disse...

Continuas a ser a pessoa que muito prezo desde que te encontrei.

Bem hajas, amiga!

O Árabe disse...

Boa semana, amiga. Fica bem!

Joana Aguiar disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
C Valente disse...

Passei e deixo as saudações amigas

C Valente disse...

Passei e deixo as saudações amigas

O Árabe disse...

Aguardo o novo post, amiga. E, principalmente, espero que estejas bem! Boa semana.

Isamar disse...

Uma história de vida comovente, infelizmente igual a muitas outras porque a barreira do preconceito impede que as chefias bolorentas decidam de acordo com o mérito.

Bem-hajas, amiga, pela forma eloquente mas também clara como expuseste o caso.

Beijinhos

Joana Aguiar disse...

Muito obrigada por disponibilizar os seus textos.

Zé Povinho disse...

Estranhando a ausência passei para desejar um bom fim-de-semana.
Abraço do Zé

R.Almeida disse...

Gostei imenso deste texto, que relata a vida do João. Pensei noutros Joões, que existem por esse Portugal fora e pelo mundo e nas injustiças que o ser humano tem para com outros seres da mesma espécie. Pensei na fome e nos milhões de seres humanos em que ela é a realidade dos seus dias. É tempo de reflexão e mudança. É tempo de revolta e de acção. Vozes que se levantam num mundo que nunca foi perfeito, mas que aos olhos de quem quer ver está cada vez pior. Resta-nos o sonho e o acreditar na utopia de que as coisas um dia possam mudar.

Unknown disse...

Venho por este meio convidá-la a participar na Comunidade de Boas Práticas SHST ,faça o seu registo em Comunidades.ina.pt e a seguir com a password faça a adesão em grupos à Comunidade de Boas Práticas SHST ,temos um espaço de discussão onde poderá partilhar este relato connosco.Espero por si sou a facilitadora da Comunidade.casimira Flor o meu email : miraflo@gmail.com
Qualquer dúvida disponha e grata pelo seu relato

Joana Aguiar disse...
Este comentário foi removido pelo autor.